Mestre Bimba

O componente ético dos ensinamentos do Mestre Bimba na sua "academia" estava implícito na sua pedagogia, exemplificado pelo seu comportamento e posteriormente, na década de 50, por mim explicitado a guisa de "regulamento", divulgado em quadro na parede oposto a entrada do salão.
Havia naquela época uma multiplicidade de conduta consoante os universos freqüentados pelos praticantes da regional:
a) conduta dentro da academia e entrepares;
b) relacionamento com os grupamentos de capoeira não vinculados à "regional"; e finalmente,
c) comportamento em contexto social sem conexão com a capoeira, especialmente com a regional.
Não podemos estudar a ética do Mestre Bimba e dos seus primeiros seguidores, por ser esta um conjunto de regras de conduta num determinado momento histórico e pertinente a um universo específico. Assim teremos que considerar:
A ruptura do mundo da capoeira provocada pela eclosão da luta regional baiana, gerada com a pretensão inicial de ampliar a eficiência do jogo da capoeira em voga na época e, portanto, com a necessidade de afirmação desta maior eficiência presumida ante os praticantes do jogo primevo; a introdução da capoeira - uma manifestação cultural africana, legalmente proscrita e socialmente discriminada ou seja, duma manifestação dum segmento social dominado, procedente duma categoria escravizada - diretamente no seio daqueles que se outorgavam o título de senhores da terra e portanto, num ambiente social hostil (classe dominante de raízes européias);
Uma relativa discriminação entre os participantes de grupos diferenciados pela presença do trabalho de Bimba, i.e., os mestres da velha ordem (jogo de capoeira) e os representantes da nova ordem proposta pelo Bimba;
A natural pergunta - Por que Bimba e não eu?- implícita nas palavras e no comportamento dos mestres excluídos da preferência dos recém-chegados ao universo da capoeira, do acesso à fonte de prestígio social e da nova e promissora fonte de renda. Interrogação que necessariamente conduzia ao ciúme, à inveja e ao despeito, com todas suas conseqüências malignas;
A necessidade política de manobras entre os obstáculos lega para alcançar a liberdade de prática e entre as malhas do preconceito para granjear a simpatia dos mentores da juventude, donde proviam os novos alunos;
Os temperamentos e níveis culturais de Bimba e dos seus primeiros alunos, componente do amálgama da "regional", fruto da miscigenação de componentes culturais africanos a indígenas brasileiros e eurobrasilianos, que sem dúvida influenciaram as diretrizes técnicas e comportamentais da nova face da "brincadeira de pretos".
Manoel dos Reis Machado, filho de Sr. Luis Candido Machado e Dona Maria Martinha do Bonfim, nasceu aos 23 de novembro do ano de 1899. Foi registrado no ano de 1900. Mestre Bimba recebeu o seu apelido devido a uma aposta feita entre a parteira e a sua mãe: a mãe dizia que seria uma menina e a parteira, convicta pelo seu conhecimento, dizia ser macho. Na o hora do nascimento, surgiu a expressão: “GANHEI A APOSTA O CABRA TEM BIMBA E CACHO”! O apelido já nasceu com ele.
Bimba, com 12 anos de idade, começou a praticar a Capoeira. O seu mestre foi o Africano Bentinho, que disse da seguinte maneira: esse menino vou preparar do meu jeito.
Bimba tinha o tipo físico de uma rocha escarpada, muito alto, andar dançante, seguro em cada passada, olhos grandes, ombros largos e sempre dando risada.
Bimba começou a ensinar capoeira com 18 anos de idade. O nome da Academia era Clube União em Apuros. Até 1918 não havia Escola de Capoeira. Só havia rodas. Mestre Bimba então criou a Capoeira Regional, proque acreditava que a capoeira primitiva estava minimizada e folclorizada, resumida a apenas nove movimentos. O resto era só pantomimas, acrobacias, coisa para turista ver.
A partir da criação da Capoeira Regional, Mestre Bimba resgatou os movimentos mais precisos da capoeira primitiva, juntou com alguns movimentos do batuque, (luta braba, com quedas, com a qual o sujeito jogava o outro no chão), da qual o seu pai era campeão. Mestre Bimba deu o nome de Regional para representar a Bahia.
A vida de Mestre Bimba foi repleta de sucesso e decepção. Abaixo, lista-se alguns de seus feitos e contribuições a essa arte:
• A sobrevivência da Capoeira;
• A liberdade da Capoeira;
• A profissionalização da Capoeira;
• A metodologia da Capoeira;
• O respeito da sociedade pela a capoeira;
Além disso, Mestre Bimba também conseguiu que ficasse evidente, através de sua própria vida, o desrespeito e o descaso das autoridades pela nossa cultura.
Mestre Bimba veio a falecer em 05 de fevereiro de 1974, na cidade de Goiás. A causa da sua morte foi o “Banzo” (doença da "saudade"), acarretando uma parada cardíaca fatal.
RELAÇÃO ENTRE MESTRE E ALUNOS
A figura carismática de Bimba se apresentava entre nós como a projeção da autoridade patriarcal e magistral, impondo respeito irrestrito e a imitação do seu comportamento viril, sem titubeios, nem dúvidas. Sua palavra era a lei e a verdade. A nossa verdade e paradigma a ser acompanhada durante toda uma vida, gravada na alma e no coração ao fogo e ferro duma veneração ilimitada, persistindo no meu caso há mais de 60 anos!
RELAÇÃO INTERPARES
A relação entre os componentes da nossa academia seguia o modelo ético e a etiqueta africana. Cumpre acentuar que, sem o conhecimento destes padrões comportamentais africanos não se pode compreender o sentido de suas regras e suas conotações éticas. Impõem-se como fundamentais o estudo e conhecimento da cosmogonia, da cosmogenia, da filosofia e da lógica africanas, bem como do escravismo como fator econômico no ciclo de conquistas e dominação do mundo pela cultura européia.
A capoeira moderna vem afastando de suas raízes africanas pela europeização dos seus cantos, musicas ritmos, rituais e técnicas. Impõe-se assim o retorno à fonte original para coletar os fundamentos mais límpidos dos componentes culturais. Única maneira de obter os conhecimentos indispensáveis à elaboração do código de ética, contrabalançando a contaminação pela violência decorrente do colonialismo europeizou e da pretensa superioridade cultura dominante.
O respeito ao "mais velho", fonte de aprendizado pelos "papos" e demonstrações práticas, detentor de conhecimentos e habilidades desconhecidas pelo "mais novo", era imposto pela tradição e pelo reconhecimento tácito da superioridade. O respeito pelo companheiro era imposto, pelo desconhecimento da sua capacidade atual e pela regras...
"Confiar sempre no parceiro...
Desconfiando do que ele possa fazer!”
“O parceiro é como o espelho, reflete a sua conduta...
Não bata, para não apanhar!”
“Quem bate sempre esquece...
Quem apanha sempre se lembra e espera...
Um dia vai desforra!”.
RELAÇÃO COM CAPOEIRISTAS DE OUTROS GRUPOS
A convicção profundamente enraizada da superioridade técnicas da regional sobre o jogo de capoeira tradicional, aliada ao ânimo belicoso dos alunos, a necessidade de auto-afirmação, a pretensa superioridade cultural da classe dominante (donde provinham os "acadêmicos"), a humildade dos praticantes do jogo tradicional e o receio das conseqüências legais do enfrentamento individual do popular com o dominante, perturbavam sobremodo as relações amistosas entre o "clássico" (a capoeira tradicional ou popular) e o "moderno" (a "luta" regional do Mestre Bimba) acarretando o óbvio: um agastamento de ambas as partes.
Acentuavam a divergência e insuflavam o enfrentamento, a diferença de ritual e o andamento dos toques, desde que no estilo de Bimba era permitido e recomendado, o uso dos membros superiores no floreio e no ataque, enquanto o ijexá era acelerado em decorrência das características pessoais do nosso Mestre e dos seus seguidores, belicosos e apressados.
Ressalvando-se o comportamento daqueles provenientes das classes populares, entre os quais eu me incluía que se harmonizava com seus colegas mais humildes, mantendo um relacionamento mais amistoso com os capoeiristas tradicionais.
RELAÇÃO COM OUTROS MESTRES
O endeusamento da figura de Bimba pelos seus alunos fatalmente conduziu, sem nenhum propósito maldoso, à diminuição do valor dos antigos mestres ante à majestade atribuída ao nosso Mestre, sendo reservado aos mesmos o papel secundário de figuras representativas dum estádio primário na evolução de nossa arte, respeitáveis ancestrais de valor histórico, porém ultrapassados.
A maioria dos acadêmicos, entretanto guardando o respeito e a consideração recomendada pela etiqueta da classe dominante no trato com as pessoais, independentemente da categoria social.
Alguns, entre os me incluía, conservando a admiração pela beleza dos seus toques e cantos; alegria, disciplina, cavalheirismo e lhaneza das rodas, e extraordinárias habilidades no jogo de dentro, no jogo baixo, elegância e gentileza dos seus movimentos, paradigmas coreográficos.
RELACIONAMENTO NO CONTEXTO SOCIAL
O preconceito da classe dominante contra as manifestações culturais áfrico-brasileiras e a sua proscrição legal conduziram os primeiros alunos do Mestre a um proselitismo somente comparável àquele dos discípulos de Jesus, sempre apregoando a superioridade dos ensinamentos e da conduta do Mestre!
Em casa, na escola, na rua, nas festas, nos cinemas, nos bares e restaurantes, nas aglomerações de qualquer natureza os alunos exibiam sua qualificação, a nobreza de ser "ALUNO DO MESTRE"!
Cada palestra uma oportunidade para cativar um seguidor potencial!
Cada instante um momento para exibir a excelência da prática da capoeira como defesa pessoal, preparo físico e coreografia!
Cada desencontro um chance para demonstrar a eficiência duma rasteira, tão
Característica da capoeira como a pele negra dos africanos e seus descendentes!
Algumas considerações importantes:
• Até o aparecimento de Mestre Bimba e a criação da sua Capoeira Regional, a capoeira era designada tão-somente como "capoeira". Então Bimba pode ser considerado um marco histórico na história da cultura brasileira, um divisor de águas, pois só depois dele foi dado o nome de Capoeira Angola e foi iniciado um movimento geral de resgate e preservação da cultura afro-brasileira em todos os seus âmbitos.
• É comum de se dizer que o Mestre Bimba introduziu golpes de outras lutas na Capoeira Regional. Na verdade, a fala está errada. O que aconteceu de fato foi que Mestre Bimba, com toda a sua genialidade e capacidade de adaptação, sempre que algum aluno mostrava-lhe algo que tinha visto em outras lutas ou outras técnicas, o Mestre vinha com a sua visão ampla e ensinava ao seu discípulo como se defender de tal ataque.
• Jamais, em seus 56 anos de aula, o Mestre Bimba feriu um aluno. Bimba deixava claro que não devia haver luta ao som do berimbau. Seria um desrespeito aos princípios e a Regional tem como um de seus pilares o respeito à integridade física e moral dos companheiros.
• Sabe-se que o Mestre Bimba desafiou todos os capoeiristas e lutadores baianos da sua época e que ele venceu todas as lutas e só foi desclassificado em uma, por ter dado um galopante em seu oponente e colocado assim o adversário para fora do ringue. Mas o principal de tudo isso que deve ser ressaltado é que nunca o Mestre Bimba lutou ao som do berimbau. Luta era coisa para o ringue, afirmava ele.
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